Ministra volta a mexer no mapa judiciário sem consenso com juízes





Governo está a reavaliar a organização dos tribunais e num estudo propõe alterações um pouco por todo o país. Comarcas estranham não ter sido informadas e há quem acuse o ministério de ter tomado decisões com base em critérios errados Sociedade, 14/15 
 
Governo quer alterar mapa dos tribunais mas há juízes a contestar Presidentes de comarcas estranham não terem sido informados do conteúdo de estudo que já foi enviado ao Parlamento. 
 
E há quem acuse tutela de tomar decisões com base em critérios errados 
 
Ana Henriques 
 
O Ministério da Justiça está a reavaliar a forma como os tribunais estão organizados e produziu um estudo em que propõe alterações um pouco por todo o país. E se algumas são de menor monta, como a transferência de competências de uns tribunais para os outros dentro da mesma comarca, outras há de maior vulto. É o caso da criação de um tribunal de comércio em Lagoa, no Algarve. 
 
Certo é que a maioria dos juízes que dirigem as 23 comarcas judiciais do país não conhecem o documento, que tem 400 páginas e já foi entregue no Parlamento. Mas nem todos concordam com as soluções aí preconizadas, de que já ouviram zunzuns - ou com a falta delas. Ana Mafalda Santos está neste último caso: governa a única comarca que não foi contemplada com qualquer tipo de alteração, nem mesmo no que toca ao número de magistrados. O estudo prevê um acréscimo de 79 pessoas nos quadros de pessoal em praticamente todo o país, 37 juízes e 42 procuradores, muito embora parte destes lugares já esteja a ser assegurada por profissionais contratados especificamente para suprir carências de pessoal. 
 
Portalegre é das poucas comarcas do país onde a propalada especialização da justiça não vingou: apenas existe jurisdição do trabalho, mas nem tribunais de família e menores nem de execução (o nome empregue para processos relacionados com dívidas). Este tipo de litígios tem por isso de ser dirimido nos tribunais ditos generalistas, por magistrados não especializados. E assim vai continuar, a julgar pela proposta entregue no Parlamento. Mafalda Santos lamenta: 
 
"Esta comarca ficou um bocadinho esquecida. Aqui a reforma parou." 
 
O estudo admite que o volume processual em matéria de família e menores poderia justificar a criação de serviços especializados no distrito. Porém, "a dimensão territorial da comarca, a natureza sociológica e económica da população e a reduzida oferta de transportes públicos, com horários incompatíveis com o funcionamento dos serviços de justiça, desaconselham-no", pode ler-se. 
 
A hipótese de fazer deslocar os juízes aos tribunais de menor dimensão não foi colocada. "Há falta de vontade no pagamento das deslocações", deduz a presidente da comarca. 
 
Igualmente insatisfeito se mostra o seu colega do distrito de Beja, que se confronta com graves problemas de instalações. "Brincar com a organização da justiça traz problemas terríveis", vai avisando José Lúcio. O estudo mais não faz do que dar-lhe mais um juiz, mas do que se queixa o magistrado, para além do estado do Palácio da Justiça de Beja, é mesmo da falta de funcionários judiciais. 
 
Privado de um terço dos oficiais de justiça previstos no quadro, de uma coisa tem a certeza: "Não há condições materiais para fazer mudanças que não sejam cosméticas." 
 
Novo tribunal em Lagoa 
 
Nem todos se queixam. Instalado numa antiga escola, o desejado novo Tribunal de Comércio de Lagoa tem abertura anunciada para Setembro que vem. E o juízo de proximidade de Sines - designação sob a qual foram colocados os antigos tribunais que reabriram no início de 2017 mas que têm funcionado sobretudo como balcões de atendimento, sem magistrados residentes embora com realização de julgamentos de quando em vez - voltará a ter uma valência laboral, como reivindicava a população. 
 
O presidente da comarca de Setúbal, Manuel Sequeira, corrobora o que diz o seu colega de Beja: o principal problema continua mesmo a ser a falta de funcionários. 
 
Este juiz entende que fazer julgamentos de processos-crime de pequena dimensão nos juízos de proximidade, para que as populações possam assistir, não faz grande sentido: "Ninguém quer saber dos casos de pequena dimensão", e os casos mais mediáticos, como os homicídios, são habitualmente julgados na sede da comarca, por muito que os crimes tenham acontecido noutra localidade do distrito. 
 
Ao nível da aproximação entre os tribunais e as populações, o documento entregue aos deputados prevê que também os julgamentos dos processos de natureza cível possam passar a realizar-se nos tribunais de proximidade, desde que não ultrapassem determinada dimensão. Uma alteração que "não afectará a capacidade de resposta do actual sistema nem acarretará custos relevantes, na medida em que os juízes já ali se deslocam para realizar os julgamentos dos processos de natureza criminal". 
 
O estudo dá ainda conta de uma "diminuição impressiva" da litigância nos tribunais nos últimos anos, sobretudo na área cível, muito embora a procura continue a crescer nas áreas de família e menores, comércio e trabalho. 
 
Daí que um dos caminhos apontados neste trabalho passe por alguns juízes ficarem afectos não só a um mas a dois tribunais diferentes, por forma a rentabilizar o seu serviço. 
 
Os magistrados que se candidatarem ao juízo local cível de Amarante no próximo concurso, por exemplo, também terão de trabalhar nos processos de Felgueiras. Não é certo que este tipo de solução, designada como agregação, não gere protestos entre a classe. 
 
A presidir à comarca de Lisboa Norte, sediada em Loures, Rute Lopes queria que lhe colocassem no quadro mais cinco juízes. Debalde: tiraram-lhe um, numa valência em que de facto não lhe faz falta, mas para sua surpresa o resto ficou na mesma. Resta-lhe continuar a recorrer aos magistrados supletivos. 
 
Que o estudo tenha já chegado aos deputados mas não aos dirigentes das comarcas é algo que considera lamentável. 
 
O quadro do juízo central cível de Coimbra, no qual estão pendentes acções em que se discutem valores superiores a 30 milhões de euros, ficará com menos um juiz. Isabel Namora, que dirige a comarca, questiona os critérios usados pelo Ministério da Justiça. É que para calcular o número de processos resolvidos por cada juiz - o chamado valor de referência processual -, este documento baseou-se em determinado tipo de processos, as chamadas espécies relevantes. Só que é ao Conselho Superior da Magistratura que cabe dizer quais são as espécies a levar em linha de conta, e não ao Governo, explica. "Os dados com que o conselho está a trabalhar são diferentes dos usados neste estudo para efeitos de contabilização de processos", critica a magistrada, que assinala ainda a utilização de critérios diferenciados entre comarcas. "Justificava-se tratar este assunto com cuidado e respeito." 
 
Isabel Namora pretendia ainda que o juízo de proximidade de Soure, a 34 quilómetros de Coimbra, fosse promovido a tribunal de competência genérica, ficando com um juiz residente. Se a tutela insistir em não acolher a sugestão, os magistrados vão ter de continuar a perder tempo a deslocar-se ali. Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Justiça recusou-se a prestar qualquer esclarecimento sobre este estudo, alegando tratar-se de um documento de trabalho que ainda não é definitivo. 
 
Principais medidas previstas 
 
Julgamentos cíveis 
 
Os chamados juízos de proximidade - uma espécie de balcões de atendimento onde já são julgados os processoscrime puníveis com penas até cinco anos de cadeia - passam também a ter julgamentos de processos cíveis, desde que não ultrapassem determinada dimensão. 
 
Novo tribunal em Lagoa 
 
Lagoa passa a ter um tribunal de comércio. Nunca tinha tido um tribunal até hoje. Ficará instalado numa antiga escola. 
 
Mais magistrados no quadro Aumento de 79 magistrados nos quadros, 37 dos quais juízes e 42 procuradores. Parte destes lugares está já a ser assegurada por profissionais contratados especificamente para suprir carências de pessoal. 
 
Juízes afectos a dois tribunais 
 
Há comarcas onde certos juízes ficarão afectos não só a um mas a dois tribunais diferentes, rentabilizando o seu serviço. 
 
Trata-se de uma solução designada por agregação, e que já foi usada no passado. É o que vai suceder por exemplo em Melgaço e Monção, Caminha e Vila Nova de Cerveira, na comarca de Viana do Castelo, Amarante e Felgueiras (matéria cível), Felgueiras e Lousada (matéria criminal), na comarca do Porto Este, Grândola e Santiago do Cacém (matéria cível e crime), na comarca de Setúbal, e Fundão e Covilhã (matéria criminal), na comarca de Castelo Branco. 
 
Especialização em Angra Angra do Heroísmo ganha um juízo especializado misto para litígios relacionados com questões laborais e também respeitantes a família e menores 
 
Tribunal de Portalegre está encerrado há quatro anos devido a uma cisterna 
 
José Bento Amaro 
 
O Palácio da Justiça de Portalegre está encerrado há mais de quatro anos. As obras de ampliação, que deveriam ter-se iniciado em Novembro de 2014 e ficado concluídas 18 meses depois, não se efectuaram apenasforam removidas algumas placas de amianto, trabalho esse feito na sequência de uma outra empreitada. Há mais de quatro anos que os serviços do tribunal funcionam em edifícios alugados e cuja funcionalidade está cada vez mais posta em causa. Há julgamentos que têm de ser realizados em salas emprestadas, nomeadamente na câmara municipal. 
 
A assessoria de imprensa do Ministério da Justiça estima que a ampliação possa ficar finalmente concluída no espaço de um ano, depois de novas propostas para realização dos trabalhos terem sido entregues no final do mês passado. São obras estimadas em cerca de 950 mil euros. E porque é que não se iniciaram em Novembro de 2014, quando o edifício foi encerrado? Porque "foi localizada uma cisterna cuja localização estava erradamente identificada, pois estava fora da área de intervenção da obra, mas que efectivamente se localiza parcialmente sob a ampliação a executar". Tal descoberta, refere ainda o Ministério da Justiça, esteve na origem de novo projecto de fundações, tendo sido rescindido o contrato de empreitada então celebrado. O novo procedimento concursal que se lhe seguiu "só agora está a chegar ao seu termo". 
 
Devido ao desconhecimento da localização da cisterna e consequente atraso nos trabalhos, as audiências dos julgamentos passaram, desde então a realizar-se no antigo edifício da ex-Junta Autónoma das Estradas ( JAE), em Portalegre, e também numa sala localizada sobre um supermercado. "Não são, naturalmente, locais que reúnam as condições desejáveis", diz a juíza que dirige a comarca de Portalegre, Ana Mafalda dos Santos. O atraso nas obras tem posto a nu diversas carências, explica: "Não existem calabouços para os arguidos detidos. As paredes que foram feitas estão agora a atingir um elevado estado de degradação. 
 
Paga-se uma renda que poderia ser poupada e, em consequência, aumentam as dificuldades financeiras do tribunal. Mas o pior é o facto de até agora ninguém nos serviços do ministério me ter sabido dizer com exactidão qual a data prevista para o início e finalização das obras de ampliação." 
 
Alguns julgamentos de maior complexidade e com elevado número de arguidos e testemunhas não podem ser realizados nas instalações provisórias (que por o serem, diz o Ministério da Justiça, não irão sofrer beneficiações). O salão nobre dos paços do concelho tem sido um dos locais utilizados. Situação que, nas palavras de juízes e advogados, "não contribui para dignificar a administração da justiça" e "coloca seriamente em causa os procedimentos de segurança inerentes a cada julgamento", uma vez que para além de não existirem celas também não há espaços onde as testemunhas possam aguardar e onde juízes e advogados consigam ter a privacidade exigida. 
 
Desde Novembro de 2014 que há um funcionário judicial a ir diariamente ao Palácio da Justiça (construído durante o Estado Novo, com recurso a mão de obra prisional) para transportar toda a documentação processual necessária. É que o arquivo do tribunal ainda permanece instalado no velho edifício. Os receios de quebra de segurança "são reais" para a juíza presidente. "Uma coisa é ter todo o material no local de trabalho e assim poder zelar pela sua preservação, outra bem diferente é deixar todos os documentos num edifício abandonado", explica. 
 
Entretanto, em 2014 e 2016 foi adquirido novo mobiliário para o Palácio da Justiça no valor de 20 mil euros. Encontra-se embalado e armazenado numa casa de função do Ministério da Justiça e também numa ala do edifício que aguarda obras. O que suscita novas críticas: os móveis poderão já não ser adequados às necessidades quando, talvez dentro de um ano, os trabalhos ficarem concluídos. Por outro lado, um dos juízes da comarca que deveria ocupar a casa de função vive agora noutro local, uma vez que a habitação se encontra cheia de mobiliário. 
 
fonte: Público






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